Célebre por filmes de Claude Lelouch, Jacques Demy e Federico Fellini, a atriz-símbolo de uma certa elegância francesa tinha 92 anos. Morreu em Paris.

Lola (1961), o « nascimento de ma estrela »

Escrito por Inês N. Lourenço

Pouco depois da morte de Françoise Hardy, eis outro rosto icónico da “juventude francesa” que desaparece. Anouk Aimée, que não gostava de falar da sua idade, e foi marca vital feminina em filmes de Jacques Demy e Claude Lelouch, mas não só, morreu ontem aos 92 anos. A notícia surgiu assim, numa mensagem publicada no Instagram pela filha Manuela Papatakis: “Estamos extremamente tristes de vos anunciar a partida da minha mãe Anouk Aimée”, referindo que estava ao pé dela na hora derradeira da manhã, na sua casa em Paris. Claro, luminosa como era, a eterna Lola deixou o mundo às primeiras horas do dia.

Nascida a 27 de abril de 1932, na mesma cidade de Paris, com o nome Nicole Françoise Dreyfus, foi também cedo na vida que se estreou no cinema mudando o nome para Anouk quando, aos 13 anos, entrou no filme La Maison Sous la Mer (1947), de Henri Calef – Anouk era o nome da sua personagem. Reza a lenda que o apelido “Aimée” terá sido sugestão do poeta (e na altura, argumentista proeminente) Jacques Prévert, ele que conseguiu ler naquele jovem semblante a urgência de ser amado… E estava certo. Aimée fica no tecido de memórias do cinema, não apenas francês, mas internacional, como símbolo de um romantismo paredes-meias com uma secreta volúpia. Nas palavras de Federico Fellini, que a dirigiu um par de vezes, em A doce vida (1960) e Fellini oito e meio (1963): “Ela pertence à grande máscara do cinema, com este rosto que tem a mesma sensualidade intrigante que o de Garbo, Dietrich e Crawford, as grandes rainhas misteriosas.” Fellini, o mestre italiano que lhe soube extrair as marcas de uma silhueta esguia e de uma face angulosa, cujo eyeliner produz efeitos hipnotizantes…

De resto, a sua sensualidade mítica não se pode desligar de Lola (1961), o filme de Jacques Demy que, em certa medida, fez nascer uma estrela, mostrando-a num encanto “musical” que é todo ele feito da presença daquele corpo a transformar a vulgaridade em matéria radiante. Aí, Anouk Aimée é uma dançarina de cabaret e mãe solteira em vertigem amorosa, que diz “Lola, c’est moi” na medida de um vínculo com a eternidade. Cinquenta anos depois do lançamento dessa magnífica primeira obra de Demy, dizia a própria ao Le Monde: “Já não sei onde começa Anouk e onde começa Lola, onde termina Lola e onde termina Anouk.” Voltaria à personagem em Modelos de aluguer (1969), também filmada por Demy, desta feita nos Estados Unidos.

Os melhores anos

Vimo-la pela última vez no grande ecrã em Os melhores anos da nossa vida (2019), do veterano Claude Lelouch, o filme que retoma as memórias do grande sucesso deste realizador, Um Homem e Uma Mulher (1966), com Jean-Louis Trintignant e ela, Aimée, a protagonizarem um célebre romance, baseado em viuvez e no peso do passado recente – o papel valeu à atriz a sua única nomeação para um Óscar. Com o reencontro de Les plus belles années d’une vie tivemos, por isso, a oportunidade de a ver ainda numa fase envelhecida, mas sempre bela, belíssima, sempre detentora de uma galhardia que não descansava. Não por acaso, Lelouch escreveu numa rede social, a propósito da morte de Anouk: “A sua silhueta e a sua graça ficarão para sempre gravadas numa praia da Normandia. Depois de ter feito sonhar toda a terra, agora fará sonhar os anjos.”

Os melhores anos da nossa vida (2019): Aimée reencontra-se com Jean-Louis Trintignant.

Anouk Aimée deixa para trás uma filmografia longa e bem recheada de colaborações de renome, nem sempre objeto da devida atenção, para além dos referidos títulos mais sonantes. Foi dirigida por Marcel Carné (La fleur de l’âge, 1947), Vittorio De Sica (O último julgamento, 1961), George Cukor (Justine, 1969), Marco Bellocchio (Salto no vazio, 1980), Bernardo Bertolucci (A tragédia de um homem ridículo, 1981) e Robert Altman (Prêt-à-porter, 1994), entre outros, como se fosse simplesmente natural que este mistério em forma de mulher circulasse como musa nas esquinas do cinema dos melhores.

Um dos mais comoventes papéis do seu início de carreira está n’O vagabundo de Montparnasse (1958), de Jacques Becker, um filme de que quase ninguém fala e onde ela interpreta a jovem por quem o artista Amedeo Modigliani (trágico Gérard Philipe) se apaixona nos seus últimos anos de vida. Aquele que dizia só ter posses para lhe oferecer um momento partilhado à chuva, nessa Montparnasse a preto e branco, que, por sinal, era o bairro onde a atriz agora residia… À chuva ou não, Aimée foi amada.

 

[Fonte: http://www.dn.pt]