Os antigos eruditos recorriam frequentemente ao vinho para aliviar as tristezas e expressar as suas emoções, usando-o também como fonte de inspiração criativa. O huangjiu, comummente consumido pelos antigos, não só ajudava a combater o frio como também estimulava a criação artística.

Na cidade de Shaoning, em Zhejiang, região conhecida pela produção de huangjiu, revive-se uma tradição das dinastias Tang e Song denominada ‘Vinho aquecido ao fogareiro’.

O vinho e a poesia são inseparáveis na cultura tradicional chinesa. Na antiga China, bebericar o vinho enquanto se compunha poesia e beber para dissipar tristezas eram práticas comuns entre os literatos para lidarem com angústias internas e expressar emoções. Além disso, o consumo de vinho frequentemente servia como fonte de inspiração para os poetas. O grande poeta da dinastia Tang (701-762) Li Bai, conhecido como O poeta imortal e Imortal do vinho, era apaixonado por esta bebida.

Entre mais de mil poemas seus existentes, acima de 200 têm temas relacionados com o vinho. A maioria dessas peças foi composta num estado entre a lucidez e a embriaguez, utilizando profusamente metáforas, exageros e personificações como recursos estilísticos.

Essas técnicas revelam as emoções intensas do poeta, que vão desde a grandiosidade e desprendimento, até ao gozo imediato da vida e a melancolia perante o fugir do tempo. Um dos seus poemas mais representativos, Bebendo sozinho com a lua, capta de forma vívida a solidão e a melancolia do poeta.

O poema de Li Bai ‘Bebendo sozinho com a lua – primeira esquadra’, que foi traduzido para português pelo macaense António Izidro, revela a solidão do poeta e o seu profundo apreço pelo vinho e pela lua.

Contudo, a bebida que Li Bai e outros literatos chineses da antiguidade consumiam não era uma aguardente de alto teor alcoólico, mas sim o huangjiu, um vinho amarelo fermentado a partir de ingredientes como o arroz, o sorgo, o milhete, o milho, o trigo e a água, com um teor alcoólico que geralmente variava entre 14 e 20 graus. A substituição do huangjiu pela aguardente só ocorreu no final da dinastia Qing.

Segundo a medicina tradicional chinesa, o huangjiu é também considerado como um componente farmacológico. Conforme descrito no Bencao Gangmu, a farmacopeia mais famosa da China, “o vinho é naturalmente quente, com sabores picante, amargo e doce; o seu ardor expulsa o frio, o picante dispersa-se e ele promove a circulação de energia e sangue”. O vinho referido é o huangjiu, e o seu consumo moderado pode melhorar a circulação sanguínea e, consequentemente, ajudar a combater o frio. Assim, o huangjiu não apenas era amplamente consumido tanto por literatos quanto pelo povo comum, como  também era indispensável nos eventos importantes, casos de festividades, celebrações e cerimónias nupciais ou funerais na Antiguidade.

Nos banquetes da Antiguidade, praticavam-se Jiu Ling (jogos de beber), onde o castigo é consumir um copo de vinho. Um dos jogos de beber chama-se Qi Ju Ling, que significa jogos com instrumentos. Por exemplo, o Tou Hu (atirar ao boião do vinho), em que os jogadores atiram setas ou paus a certa distância para um recipiente de vinho, e quem acertar mais vencerá.

Outro jogo com instrumento é o Liu Shang Qu Shui (jarro de vinho na água corrente) em que se colocam copos de vinho num riacho sinuoso, e quem tiver o copo parado à sua frente deve pegar nele e bebê-lo.

Vários calígrafos chineses e estrangeiros reuniram-se no passado mês de abril de 2024, em Lan Ting, Shaoxing, Zhejiang, para experimentar a tradição ‘Liu Shang Qu Shui’.

No entanto, a maior parte dos Jiu Ling são jogos literários, conhecidos por Wen Zi Ling (jogos com palavras) para incentivar as pessoas a comporem poesia e versos. Por exemplo, o Fei Hua Ling (jogo de flores voadoras), um jogo literário tradicional, no qual cada participante deve recitar um verso de poesia que contenha uma palavra específica sem repetir versos já ditos. Aqueles que falharem terão de beber o vinho como penalidade. As pessoas geralmente não se importam de ganhar ou perder, o que interessa é que se divirtam através deste tipo de jogo e intensifiquem laços emocionais com amigos que têm os mesmos interesses.

Muitas peças famosas de poesia e caligrafia foram criadas por literatos durante os seus encontros com amigos, através de jogos como o Qi Ju Ling e o Wen Zi Ling, por exemplo, o Prefácio aos poemas compostos ao Pavilhão das Orquídeas, do calígrafo Wang Xizhi, e A Beber,de Li Bai, entre outras.

Curiosamente, o referido prefácio foi escrito por Wang Xizhi quando estava já um pouco bêbedo, sendo uma obra que mostra os seus excecionais talentos, tanto caligráfico, como literário. Quando ficou sóbrio, Wang Xizhi apercebeu-se de que a obra era extraordinária, e decidiu replicá-la. Embora tenha tentado muitas vezes, não conseguiu reproduzir exatamente a maneira como esta obra calígrafa foi escrita em estado de embriaguez.

Como Li Bai escreveu no poema intitulado A beber:

Quantos grandes homens/ foram esquecidos / ao longo dos séculos?
Grandes bebedores / são mais conhecidos / do que sábios sóbrios.

Embora muitos literatos da China antiga se sentissem solitários e melancólicos por não conseguirem realizar os seus ideais de vida, quer bebendo sozinhos, quer com amigos, eles encontraram consolo no álcool, e conseguiram criar uma vasta quantidade de obras poéticas clássicas, que são ainda conhecidas e admiradas pelas gentes de hoje.

 

[Fotos: Macao Daily News – fonte: http://www.dn.pt]