A polaca Agnieszka Holland fala ao JN sobre «Green Border – Zona de Exclusão», que já pode ser visto nos cinemas portugueses.

Cineasta polaca preside à Academia Europeia do Cinema

Escrito por João Antunes

Um dos grandes filmes do ano, «Green Border – Zona de Exclusão», da veterana polaca Agnieszka Holland, já se encontra em exibição. O filme baseia-se em factos verídicos e centra-se no percurso de um grupo de refugiados políticos usados como uma espécie de bola de pingue-pongue entre as fronteiras da Polónia e da Bielorrússia. Um filme que não hesita em colocar o dedo na ferida de um número de países, como a Polónia, onde os refugiados são maltratados e perseguidos e que originou uma vaga de críticas das autoridades polacas após a passagem do filme em Veneza e pouco antes de umas eleições onde os radicais de direita acabariam por ser vencidos por um grupo político mais liberal. Há dias, durante a entrega dos Prémios do Cinema Europeu, em Berlim, estivemos a falar com a realizadora, que é também presidente da Academia Europeia de Cinema.

Quando decidiu fazer um filme como este tema já devia ter antecipado algumas reações. Alguma vez imaginou que tivessem a dimensão que tiveram? 

Já sabia que ia haver alguma reação, mas nunca pensei que fossem tão fortes. Imaginava que alguma imprensa me atacasse e que o filme irritasse algumas das mais altas autoridades do país, mas nunca o presidente, o primeiro-ministro ou o ministro da Justiça. Nunca houve nada assim. Acho que se excederam. Mas também ajudaram a publicitar o filme. Quase 800 mil pessoas o viram, que é imenso para a Polónia.

Sente que teve alguma influência no resultado das eleições? 

Muita gente pensa que sim, embora não o possamos afirmar com certezas. Eu também penso que sim. O filme criou um enorme movimento moral. De repente as pessoas começaram a falar deste tema, que tinha sido negligenciado ou manipulado pela propaganda oficial. Foi uma das razões que me levaram a mostrar o filme naquele momento. Não quis esperar muito depois de Veneza, os ataques começaram logo a seguir.

Os partidos populistas utilizam a emigração como tema. A oposição foi muito tímida, na sua resposta, sempre com o mesmo tipo de narrativa, muito simpática, muito vazia. E, de repente, aparece um filme que toma uma perspetiva humanista. Não sei contabilizar quantas pessoas votaram por terem visto o filme mas uma coisa é certa, não prejudicou, como o governo esperava.

Há outros filmes a denunciar situações políticas ou sociais ultrajantes. O cinema está a ajudar contra algumas narrativas políticas dominantes? 

Os políticos estão a governar pelo medo, neste momento. E as pessoas estão a reagir nesse sentido, sentem que vivemos num lugar muito perigoso. Eu mostro situações com as quais não estou de acordo, mas também não tenho a solução. Temos de colocar a nós próprios qual é o papel da arte e do cinema. E temos estado a criar narrativas que são muito críticas em relação ao que se está a passar, é verdade. Mas não é suficiente.

Há alguns realizadores que são conhecidos como fazendo filmes de crítica social… 

São só dois, os irmãos Dardenne e Ken Loach. Sinto que não há novas vozes que sejam suficientemente fortes. O que tem sido feito no cinema é sobretudo oportunista. Não acho que o cinema deva ser político em si, mas a falta de reação face a certas situações é muito oportunista. É preciso também que os filmes toquem as pessoas. Que ao vê-lo as pessoas reajam. É esse o problema de alguns filmes que se desejam políticos.

À semelhança do que aconteceu consigo e os governantes polacos, Justine Triet também teve problemas com a ministra da Cultura francesa depois do discurso ao receber a Palma de Ouro. Parece que os artistas estão na mira dos políticos. 

Foi sempre difícil para os artistas fazerem ouvir as suas vozes. Mas hoje somos governados pela direita liberal ou pela extrema-direita. Por isso, quando temos um governo pelo menos liberal, olha-se para o lado e vê-se o que pode acontecer de pior e não se critica tanto. Não devemos pensar assim, embora esteja muito feliz pela direita liberal ter ganho as eleições no meu país e não a direita autoritária. Mas não tenho ilusões.

Não há nada que vá mudar, relativamente ao tema que aborda no seu filme? 

Pelo menos a ajuda aos emigrantes não vai ser criminalmente punida. O ambiente pode mudar um pouco, as pessoas vão sofrer um pouco menos. Mas a política geral não vai mudar. A União Europeia está a olhar para o lado, evitando enfrentar a situação.

Em algum momento receou pela sua vida? 

É verdade que fiquei um pouco nervosa com a situação. Eu, a minha família e as pessoas à minha volta. Recebemos algumas ameaças, o clima à volta do filem foi de alguma histeria. Nunca se sabe se algum fanático ou louco pode passar das palavras aos atos. Já aconteceu na Polónia. Fechei-me em casa na altura da estreia do filme e contratei guarda-costas. Foi uma experiência interessante.

O filme acabou por não ser escolhido como pré-candidato da Polónia aos Oscars… 

Foi uma decisão política. Não me quero pronunciar porque não vi o filme escolhido, mas as pressões foram tantas que os produtores convidados para escolher o candidato deviam ter recusado. Conheço alguns que me disseram que iam votar no meu filme mas mudaram de opinião face às pressões. Infelizmente, na maior parte dos países com regimes autocráticos a escolha dos filmes para os Óscars não tem nada a ver com o mérito.

Essas influências políticas têm impacto também na própria produção. 

Os realizadores, se querem financiamento para projetos mais ambiciosos, dependem dos institutos nacionais e das pessoas que os regem. E se esses institutos estão contaminados politicamente, torna-se desconfortável para todos. Temos de impedir que os centros de decisão cinematográficos estejam longe da agenda política e da própria corrupção.

Já se sabia qual era o tema do filme, teve de filmar em segredo? 

Não foi em segredo, mas foi uma rodagem discreta. Não pedimos dinheiro às instituições governamentais. Eles sabiam o que íamos fazer, mas não sabiam exatamente quando nem onde. Só lhes enviámos o guião muito tarde, já íamos a meio das filmagens.

E como é que decorreram as filmagens? 

Filmámos sempre em florestas privadas, evitámos todos os locais públicos. As reações dos media afetos ao governo foi já muito tarde, porque filmámos muito rapidamente, acabámos em 24 dias. Tinha um correalizador a filmar algumas cenas ao mesmo tempo que eu. Foi uma rodagem guerrilheira.

Como é que foi o trabalho com os atores? Há quase um lado documental, parecem todos tão realistas… 

Os atores que representam os refugiados são eles próprios refugiados. Trazem consigo essa pegada de sofrimento que transmitem no filme. Foi fácil para eles identificarem-se com as personagens. E a atriz polaca que tem o papel principal também é uma ativista na vida real. Esteve sempre na frente a ajudar os refugiados. A experiência de todos os atores ajudou-me imenso.

E o trabalho com os atores sírios, como é que se passou a comunicação? 

Com os atores cuja língua-mãe é o árabe tive o cuidado de trabalhar com eles todos os diálogos. E também o sotaque, queria que as pessoas sírias que vissem o filme percebessem que eles eram mesmo sírios. Os atores principais têm pais e avôs sírios, mas os filhos deles já não são. Era preciso que o sotaque de todos coincidisse, para que fosse credível que eram uma família.

Porque decidiu filmar a preto e branco? 

Há muito tempo que queria fazer um filme a preto e branco. A maior parte dos filmes de que gosto são a preto e branco. Mas aqui pensei também que podia dar um certo ar documental ao filme, ao mesmo tempo que lhe conferia uma dimensão metafórica. E um sentimento de intemporalidade. Mas também houve razões práticas, filmámos na primavera e tinha medo que de repente tudo começasse a ficar verde à nossa volta.

Enquanto presidente da Academia do Cinema Europeu, qual pensa ter sido até agora o papel mais importante da instituição? 

A Academia tem sido muito importante sobretudo para países mais pequenos. A França, por exemplo, foi sempre o país mais arrogante, em termos de promoção do seu cinema. Além de alguns festivais, era importante ter uma ferramenta para promover o cinema dos países europeus mais pequenos. E tem sido uma plataforma de encontros, promovendo coproduções entre vários países. A qualidade destas coproduções aumentou bastante devido ao trabalho da Academia. Têm sido mais autênticas, baseadas num gosto comum.

Qual é o seu papel exatamente, enquanto presidente?

É verdade que sou a presidente, mas não tomo parte nas decisões práticas. Há um conselho de administração, as decisões são tomadas de forma democrática, por isso não posso criticar, mas há algumas com que não posso concordar e fico pouco confortável em ter o meu nome associado. Não posso dizer quais, porque seria injusto. Vamos ver no futuro qual será a real importância da Academia para o cinema europeu.

[Foto: Tiziana Fabi / AFP – fonte: http://www.jn.pt]