O poeta e crítico literário peruano José Antonio Mazzotti, catedrático na Universidade de Tufts, nos Estados Unidos, esteve em Lisboa para um congresso de peruanistas que se realizou na Biblioteca Nacional. Conversou com o DN sobre a história e cultura do seu país, que foi sede do Império inca e depois, durante três séculos, coração de um vice-reino do Império espanhol.
Escrito por Leonídio Paulo Ferreira
O Peru foi o último país a libertar-se da colonização espanhola na América do Sul, com a Batalha de Ayacucho, em 1824. Porque é que os espanhóis resistiram tanto no Peru? Porque o vice-reinado do Peru era a joia da coroa?
Sim. Tanto o Peru quanto o México eram os dois grandes centros do poder espanhol pela riqueza mineral destes países. Quando começam as rebeliões contra a coroa espanhola, simultaneamente, no México, Venezuela e Buenos Aires, em 1810, a capital do vice-reino mais importante da América do Sul era Lima. E, por isso, havia uma nobreza espanhola e crioula local que resistiu muito à independência. Eram realistas, estavam a favor de Fernando VII. E, por isso, o Peru teve de ter intervenção das forças argentinas pelo sul e, depois, pelas forças de Simón Bolívar, pelo norte. Finalmente, derrotaram o último vice-rei espanhol, em 9 de dezembro de 1824, após a Argentina, a Venezuela, o México e o resto da América hispânica continental já o ter conseguido fazer. No entanto, Espanha continuou a dominar até 1898 Porto Rico e Cuba, que eram as últimas colónias na América, e, na Ásia, as Filipinas.
Falou das forças argentinas. Por que o general San Martín é considerado o pai da independência peruana, e não Bolivar?
San Martín chegou antes. San Martín desembarca desde o Chile na costa peruana e consegue ocupar Lima. Mas as forças espanholas fogem para a serra, continuam no território do Peru. Há um momento em que San Martín se dá conta de que ele e o seu exército não vão poder expulsar os espanhóis sozinhos e então reúne-se com Bolívar, que já tinha conseguido a independência da Venezuela, da Colômbia, do Equador, do norte para o sul.
O célebre encontro em Guayaquil.
Exatamente, o famoso encontro em Guayaquil. E Bolívar, que era um herói, claro, mas também era um homem de caráter muito forte, muito dominante, diz a San Martín que dois sóis não podem brilhar no mesmo sítio. Então chegam a um acordo de cavalheiros e San Martín, que não tinha ambições pessoais, não queria ficar como rei ou presidente, diz a Bolívar que entre para o Peru com algumas tropas e que ele iria com outras. Então chega Bolívar e continua a luta contra os espanhóis e trava duas batalhas muito importantes em 1824. A de Junín, já na serra, em junho; e, em dezembro, a batalha de Ayacucho, decisiva.
San Martín, por ter sido o libertador de Lima, é o pai da nação peruana?
Ele declara a independência em Lima, em 28 de julho de 1821. A San Martín, no Peru, temos um enorme respeito e admiração, porque é o que realmente alcança a independência, sobretudo da costa e da capital. As festas patrióticas peruanas celebram-se a 28 de julho, porque esse foi o dia em que San Martín declarou a independência em Lima.
« A San Martín, no Peru, temos um enorme respeito e admiração, porque é o que realmente alcança a independência, sobretudo da costa e da capital. As festas patrióticas peruanas celebram-se a 28 de julho, porque esse foi o dia em que San Martín declarou a independência em Lima. »
Quando se estudam as revoltas indígenas contra a Coroa espanhola, a de Tupac Amaru no século XVIII é sempre muito falada. Não era um verdadeiro indígena, pois não?
Era mestiçado e falava espanhol também.
Essa revolta de Tupac Amaru pode ser entendida como a primeira tentativa de independência do Peru?
Não exatamente a primeira, pois houve outras rebeliões anticoloniais. Mas a grande rebelião de Tupac Amaru, em 1780, foi a maior e mais importante. Porque realmente quis acabar com o domínio espanhol na serra, em Cusco. Tupac Amaru falava espanhol, e latim, mas também sabia quechua, e não queria estabelecer um projeto independentista no estilo republicano, crioulo, como o que depois irão estabelecer San Martín e Bolívar. O primeiro Tupac Amaru foi executado pelos espanhóis em 1572, e ele declara-se descendente e passa a chama-se também Tupac Amaru, Tupac Amaru II. O seu verdadeiro nome era José Gabriel Condorcanqui e era um homem rico local que tinha feito fortuna com o comércio. E isso deu-lhe recursos económicos suficientes para lhe dar a ideia de que poderia tomar o poder, fazendo frente aos abusos – e houve muitos -, e à violência.
Mas não era um projeto político de independência como o de Bolívar e San Martín, era diferente?
Chega a ser um projeto político, mas diferente, com um tom mais monárquico. Ele declara-se rei do Peru, José I, e queria restabelecer o Império inca com características mestiças, porque ele vestia-se como espanhol, falava espanhol, mas tinha outro projeto monárquico, indígena, que, bem, falhou.
Como é que se explica que os espanhóis consigam derrotar o Império inca, o qual, naquele início do século XVI, está em guerra civil e, portanto, enfraquecido?
É importante mencionar isso, porque sempre se diz como é que é possível que 168 soldados tenham derrotado 30 mil soldados? Houve várias circunstâncias, nomeadamente que Pizarro já tinha aliados indígenas quando chegou a Cajamarca, a região que agora é a zona de Guayaquil, no Equador, e ao norte da costa peruana. Havia grupos étnicos, como, por exemplo, os tallanes, que já tinham sido conquistados pelos incas, mas sentiam que os incas eram opressores. Algo parecido com o que acontece no México entre os aztecas e os tlaxcaltecas, que se odiavam. Bom, esse é um fator. Outro fator é a superioridade militar das armas espanholas. Canhões, cavalos, isso surpreendeu completamente a população indígena. E o outro fator importante é que a modalidade de encontro que tinham os incas com outras culturas era sempre a de um intercâmbio de presentes e avisos. Atahualpa não esperava que Pizarro atacasse sem provocação, e isso foi o que Pizarro fez e que surpreendeu. Há um choque cultural absoluto. Prenderem o líder Atahualpa, no dia 16 de novembro de 1532, isso paralisou a elite inca. Por outro lado, o que você mencionou da guerra civil. Atahualpa tinha saído de uma guerra civil contra o seu meio-irmão Huáscar. E, por isso, os partidários de Huáscar que estavam em Cusco não apoiavam Atahualpa, odiavam-no. Então, quando Pizarro, de Cajamarca, no norte, viaja até ao sul, é recebido em Cusco com os braços abertos, como um libertador. Inclusive, Pizarro, muito astutamente, nomeia um príncipe, outro inca, outro irmão de Atahualpa, e coloca-o no trono. Depois de três anos, já em 1536, esse mesmo inca dá-se conta de que os espanhóis não eram libertadores, não estavam ali para ajudar os incas sobreviventes, mas para dominá-los. E começa uma grande rebelião desse rei inca, Manco I como se chama. Em 1536, uma rebelião que dura três anos, fracassa, porque outra vez os espanhóis recebem ajuda de grupos indígenas locais que odiavam os incas.
Não era uma guerra só entre aztecas e espanhóis no México ou no Peru entre incas e espanhóis; havia outros grupos envolvidos?
Era uma guerra entre grupos étnicos indígenas contra o grupo inca, mas os grupos étnicos indígenas estavam dirigidos pelos espanhóis.
O Peru, até 1824, era o país mais rico das Américas?
Diria que sim, porque, apesar de já em 1824 muitas das minas de prata e ouro terem diminuído a sua produção, o Peru tinha criado um sistema de explorações que se tornaram extremamente ricas, baseadas na escravidão africana e na servidão indígena. O Peru, como talvez outros países como México, Guatemala, agora a Bolívia – embora a Bolívia só tenha sido criada em 1825 -, têm massas indígenas e, é claro, uma massa de escravos importados de África à força que moviam a produção económica nas minas, nos campos, no serviço e, por isso, o Peru tinha uma quantidade enorme de recursos humanos, mas também de recursos naturais, porque a geografia é muito variada, e há uma produção biológica e mineral muito superior à de outros países.
Essa riqueza de recursos humanos, através da escravatura, mas também a riqueza natural, refletia-se, por exemplo, em Lima como uma capital cultural das elites? Podia ser comparada com as capitais europeias? Tinha música, teatro, ou seja, poderia ser comparada com Madrid, capital imperial?
Na época colonial, sim. Há muita literatura do século XVII e XVIII em que os crioulos peruanos, principalmente em Lima, mas também em Arequipa, em Trujillo e em Cusco, que são outras cidades importantes, fazem gala, orgulham-se da sua literatura, da sua arquitetura, orgulham-se até mesmo do seu clima. Há um cronista, António de la Calancha, que escreve, em 1638, que como o clima do Peru e, principalmente, de Lima, é um clima temperado, é estável o ano todo – o inverno não é muito frio, o verão não é muito quente – a sua influência nos que nascem de raça branca é muito melhor do que a do clima em Espanha. Dizia que os limenhos eram seres superiores, porque estavam cozinhados a fogo lento, a uma temperatura estável, portanto, eram pessoas mais amáveis, pessoas mais tranquilas e com um intelecto que podia desenvolver-se sem tantos sobressaltos como em Espanha, onde há clima severo no inverno e clima severo no verão, e por isso os espanhóis são coléricos. E há outras afirmações, por exemplo, que a presença do Cruzeiro do Sul, no céu do hemisfério sul, também explicava a superioridade moral dos crioulos. Isto manifesta-se depois na produção cultural. Mas este é um discurso crioulo, crioulista, que chamo até de nacionalismo étnico crioulo, que depois vai ser a base da dominação de Lima e dos crioulos no século XIX e XX, sobre o resto da população indígena, mestiça e africana.
Como são os contactos dos portugueses na era colonial com o Peru?
É um contacto rico, pouco conhecido, mas rico e muito importante. Os portugueses chegam no século XVI, mas depois começa a notar-se mais essa presença a partir do século XVII. Antes dos portugueses do século XVII já havia um português, Henrique Garcês, que trabalhava numa mina na região de Huancavelica e é o primeiro que aplica no Peru o método de purificação da prata utilizando o mercúrio. Este português faz uma grande contribuição económica para o vice-reino peruano na década de 1580.
E entravam via Brasil ou diretamente no Peru, vindos por mar?
Geralmente, chegavam ao Peru pelo Panamá. Os barcos paravam em Portobelo, na costa caribenha do Panamá, viajavam de mula e a cavalo até à cidade do Panamá, porto importante já no Pacífico, e depois apanhavam barcos para o Peru.
Então esses portugueses iam à procura de fortuna no Peru?
Alguns. Mas voltando a Henrique Garcês, outra contribuição muito importante que ele tem é nas humanidades, nas letras, porque traduz Camões e também traduz Petrarca. Era um humanista no sentido amplo da palavra. Depois, há muitos portugueses que, fugindo da Inquisição, sobretudo no período da anexação espanhola, em 1580 e até 1640, levaram as suas fortunas para a América e alguns estabeleceram-se em Lima, onde dominavam a banca e o sistema financeiro durante a primeira metade do século XVII. Eram portugueses muito ricos que, pouco a pouco, a Igreja católica começa a perseguir e, no final, fica com as suas fortunas, mas promoveram muito o desenvolvimento e o auge económico que teve o Peru no século XVII. E assim, há portugueses, não tantos como italianos e como espanhóis, claro, mas há uma presença portuguesa relativamente contínua no Peru desde o século XVI e até ao século XX.
Quando pensamos no Peru de 2023, resulta da colonização espanhola do Império inca mas também das migrações, como disse, italiana, igualmente japonesas e chinesas. O Peru só é entendível com esta mistura?
Sim, o Peru agora é um mosaico de culturas. É um país que tem raízes indígenas ainda fortes. Continuam a falar-se pelo menos 48 línguas indígenas vivas, que pertencem ao património de grupos que podem ser considerados, em sentido estrito, verdadeiras nações originais. Depois, o espanhol, claro, é a língua maioritária, a que fala a maioria da população. Mas, sobretudo no século XIX e no século XX, chegam muitos chineses para substituir a mão de obra africana, porque houve a abolição da escravidão em 1854, mais cedo do que nos EUA; mais cedo do que no Brasil, claro. E chegam depois muitos japoneses, no fim do século XIX, também para trabalhar nas fazendas e, durante a primeira metade do século XX, chegam mais italianos, franceses, de novo espanhóis, e alemães. E isso produz um efeito cultural tremendo, porque cada uma dessas vagas migratórias e desses grupos traz a sua própria cultura. Uma manifestação óbvia é a comida. O Peru tem uma riqueza gastronómica impressionante, graças à fluidez de grupos humanos praticamente de todas as partes do mundo. E a isso tem de adicionar a riqueza dos recursos. O Peru tem um dos mares mais ricos do mundo, porque se juntam a corrente fria de Humboldt com a corrente do El Niño, que é quente. Então temos peixes de água quente, peixes de água tépida e peixes de água fria. Por isso, a comida da costa peruana é alucinantemente rica e variada. Depois está a tradição indígena, que também tinha a sua cultura culinária. A tradição africana, sem dúvida, a tradição amazónica e o ingrediente asiático. Há uma variedade de comida tremenda. Na literatura também temos manifestações desta diversidade.
Hoje é muito conhecido Mario Vargas Llosa, o Nobel da literatura, mas há ainda inca Garcilaso, no século XVII, que é um nome também com alguma projeção. Que grandes escritores tem o Peru?
Há muitos. Mencionou o inca Garcilaso, mas no período colonial há muitos. O Lunarejo, que é Juan de Espinosa Medrano, um autor da segunda metade do século XVII, barroco, um dos grandes escritores barrocos americanos. Depois há Pedro Peralta, no século XVIII, um sábio tremendo, equivalente ao que seria no México Carlos de Sigüenza e Góngora. Pedro Peralta escreve no Peru. No século XIX há muitos escritores importantes, mas o auge da literatura peruana começa no século XX. Teria de dizer que foi com dois grandes poetas: José Maria Eguren e César Vallejo, que estabelecem uma tradição de grande qualidade literária. E Vargas Llosa, é claro, é muito importante, é um autor que surge nos anos 50, mas dentro de sua própria geração, há excelentes poetas, como Jorge Eduardo Eielson, Washington Delgado, Sebastián Salazar Bondi. Depois, vêm gerações relativamente mais jovens. E dentro do plano da narrativa, já que mencionou Vargas Llosa, que é, claro, imensamente importante, há narradores como Oswaldo Reinoso e Miguel Gutiérrez, que morreram há poucos anos. Há uma variedade tremenda, há muitas escritoras mulheres de qualidade. A riqueza literária peruana aumentou, multiplicou-se e agora com o « giro decolonial », como se chama, ou seja, o redescobrir das mentalidades indígenas, da produção cultural indígena, há muitos poetas, novelistas, narradores de origem indígena nas suas próprias línguas, poetas quechuas. Um dos maiores foi José Maria Arguedas.
« Vargas Llosa, é claro, é muito importante, é um autor que surge nos anos 50, mas dentro de sua própria geração, há excelentes poetas, como Jorge Eduardo Eielson, Washington Delgado, Sebastián Salazar Bondi. »
E são traduzidos para o espanhol?
Sim. No caso de Arguedas, ele escrevia diretamente em espanhol as suas novelas, mas a sua poesia, escrevia em quechua e traduzia. O grande pensador marxista da América Latina é peruano, José Carlos Mariátegui. Este último escreveu, sobretudo na década de 1920. E a Teologia da Libertação é formulada por um peruano, Gustavo Gutiérrez.
Pode dizer-se que o Peru tem uma centralidade na América que existia com os incas, existia durante o vice-reino espanhol e continua?
Continua a existir uma grande produção cultural, uma grande produção humanista. Também há muitos pintores, muitos músicos. A produção cultural, em geral, peruana, é muito mais forte, muito mais rica do que a dos países da América Latina. Talvez só o México se compare, com a grande tradição indígena e colonial que também tem. E apesar de haver extraordinários escritores na Argentina, no Chile, no Brasil, sem dúvida, não têm essa mesma trajetória histórica. Porque, infelizmente, nesses países há muito pouca tradição indígena. Então, o Peru, nesse sentido, oferece mais, mais variedade literária, pela tradição indígena, a tradição africana, a tradição amazónica, a tradição oriental, a tradição europeia, que continuamente regressa. Enquanto outros países, basicamente, têm uma riqueza baseada na migração europeia. Há grandes escritores latino-americanos, como Borges, na Argentina, Neruda, no Chile, Lezama Lima, em Cuba, e tantos mais, mas, em conjunto, acho que o Peru está por cima.
[Foto: Leonardo Negrão / Global Imagens – fonte: http://www.dn.pt]